25/07/2012 - 16:46

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"Tratados humanos devem ser cumpridos", diz Rosa Cardoso

Valor Econômico

A cliente mais famosa de Rosa Maria Cardoso virou presidente da República e a advogada de 65 anos foi nomeada para a Comissão da Verdade. Mas os fatos não guardam causa e efeito. Não fiz nenhum movimento para ser escolhida. Ela [Dilma] não faz escolhas por critérios de coleguismo, amiguismo ou gratidão. Não é isso que a inspira. Ela faz escolhas pensando que, do ponto de vista do seu entendimento, alguém vai cumprir bem um determinado papel, diz Rosa Cardoso.
 
Pernambucana, a advogada de 65 anos formada pela antiga Faculdade Nacional de Direito, hoje UFRJ, mestra em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP) e doutora em Ciência Política no Iuperj, atua desde 1970 na área criminal.
 
Chegou a Dilma, no Presídio Tiradentes, em São Paulo, por indicação da família do então marido da prisioneira, Carlos Araújo. Sua carteira de clientes de presos políticos incluiu ainda Apolônio de Carvalho, herói da guerra civil espanhola e da resistência francesa.
 
Passados os anos de chumbo, foi secretária-adjunta de Justiça do Rio no governo Leonel Brizola. Abriu escritório, que hoje representa no Rio o do advogado paulista e ex-ministro da Justiça, José Carlos Dias, e mantém um pé na academia. É professora do Curso de Especialização em Políticas Públicas e Governo da Uerj.
Não advoga o confronto entre a Comissão da Verdade e o Supremo Tribunal Federal que já se pronunciou pela validade da Lei da Anistia. Mas defende que a Comissão recomende ao governo brasileiro o cumprimento de tratados e convenções internacionais de Direitos Humanos, como é o caso da Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA, que cobra Justiça para os mortos do Araguaia e para Vladimir Herzog.
 
Estes tribunais entendem que crimes desta natureza não podem ser perdoados por leis internas, o que caracterizaria uma lei de impunidade.
 
Rosa Cardoso diz que a comissão ainda pode ajudar a elucidar o apoio civil ao terror, a violência na área rural e no movimento sindical e o apoio e o intercâmbio do Brasil com as ditaduras do Cone Sul.
 
Abaixo, a entrevista de Rosa Maria Cardoso ao Valor.
 
Valor: A senhora se surpreendeu com a indicação de seu nome para integrar a Comissão?
 
Rosa Cardoso: Não fiz nenhum movimento para ser escolhida. Mas não me surpreendeu a indicação porque eu tive trajetória muito compatível com o que pretende uma Comissão da Verdade. Entre 1968 e 1969, eu já atuava no escritório de Modesto da Silveira, no Rio, na defesa de dezenas de presos políticos. Conheci Dilma no Presídio Tiradentes, em São Paulo, por indicação da família de Carlos Araújo, então seu marido, de quem fui advogada. Além deles, defendi na época figuras emblemáticas da esquerda como Apolônio de Carvalho, herói da guerra civil espanhola e da resistência francesa e Ariston Lucena, que foi condenado à pena de morte, depois substituída por prisão perpétua.
 
Valor: A Comissão se propõe a resgatar a memória da sociedade brasileira sobre o que aconteceu naquele período. Qual é a estratégia para alcançar este objetivo?
 
Rosa Cardoso: As linhas de atuação da Comissão da Verdade são duas: recolher material e ouvir testemunhas, vítimas e familiares na busca aos mortos e desaparecidos. Outra, é denunciar que desaparecimentos, tortura e morte dos opositores foram políticas sistemáticas de Estado, como aconteceu no Araguaia. Não foi uma política da tigrada [torturadores], embora essa tigrada possa ter executado com maior ou menor fúria estas atribuições. Nós temos muito material que comprova isto. O CPDOC (Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasida FGV) tem um depositório de depoimentos de militares, inclusive o próprio Geisel, onde recolhemos este tipo de informação. O livro do (Elio) Gaspari no primeiro volume já mostra que houve uma política de Estado para assassinar e matar a oposição. Ele (Gaspari) teve acesso a documentos que o próprio Golbery lhe deu e a caixas que a Amália Lucy [filha do Geisel] lhe deu com discursos e impressões do pai. Está tudo lá. Agora, tem uma outra parte que a lei atribui à comissão que é uma descrição pormenorizada das mortes, dos desaparecimentos, das estruturas de repressão em alguns lugares. E, nas mortes por torturas e graves violações vamos levantar quem praticou, como e onde aconteceu. Nós esperamos poder fazer um registro de cada um dos mortos e desaparecidos. Estamos pretendendo produzir um documento a respeito de cada um.
 
Valor: Até agora conseguiram avançar?
 
Rosa Cardoso: Nessa questão nós vamos ter que trabalhar com as vítimas e familiares, como todas as Comissões da Verdade. Eles são também nossas fontes. Não são só livros e documentos, mas vítimas e familiares, disponibilizando instrumentos que o Estado diz que podemos utilizar para avançar.
 
Valor: Como vão proceder em casos em que a punição aos torturadores é cobrada pelos Tribunais Internacionais de Direitos Humanos, como a Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA?
 
Rosa Cardoso: Nós da Comissão da Verdade combinamos que, para não prejudicar o nosso trabalho e a importância dele de procurar a verdade sobre vários aspectos com os instrumentos que o Estado nos deu para buscá-la e que estão enunciados inclusive na própria lei, que nós não faríamos pronunciamento sobre a Lei da Anistia. No entanto, com relação ao cumprimento de tratados e convenções nós [Comissão] temos entendido que somos favoráveis ao cumprimento de Tratados e Convenções que o Brasil assinou e que se tornou lei. A Comissão entende que esses tratados devem ser cumpridos. E que nós temos que criar uma cultura interna, que ainda está parecendo que não está bem consolidada que estes tratados têm de ser aplicados, pois reconhecidos eles já são e têm valor de emenda constitucional.
 
Valor: Caso da OEA, por exemplo, em relação ao Herzog...
 
Rosa Cardoso: O Caso Herzog não é talvez o melhor exemplo. O caso do Araguaia é melhor. Na verdade nós temos um impasse aí. Nós acreditamos que este impasse vai ter que ser resolvido e o que podemos dizer é que nós achamos que os tratados [internacionais] devem ser cumpridos.

Valor: O que determina este tratado da OEA relação ao Araguaia?
 
Rosa Cardoso: Que o Estado tem responsabilidade por isso, que houve genocídio, que a isto se aplica uma legislação internacional.
 
Valor: A Comissão vai trabalhar também neste nicho dos tratados internacionais?
 
Rosa Cardoso: Não é que nós vamos trabalhar. Nós não vamos falar de Lei da Anistia. Não vamos entrar em conflito com o Supremo. Um dos produtos do nosso trabalho vai ser um conjunto de recomendações. Isto provavelmente estará entre as nossas recomendações.
 
Valor: Como a senhora avalia a posição do Brasil em relação aos crimes cometidos por agentes do Estado na comparação com Chile, Argentina e Uruguai que optaram por punir estes agentes e os mandatários desses crimes, como o caso do general Rafael Videla?
 
Rosa Cardoso: O problema é que isso tudo, e aí falo até de uma forma mais acadêmica, de quem estudou esta situação, essas posições de cada país dependem de uma correlação de forças, de movimentos sociais que obrigam a determinados entendimentos e ações. Lá a sociedade estava mais dividida entre esquerda e direita. Houve mais mortes, mais desaparecimentos forçados. No Brasil a violência foi mais seletiva. Houve um número menor de pessoas mortas e desaparecidas do que nesses regimes. Como tem uma parte da sociedade que se manifesta mais fortemente, eles obtiveram isto mais rapidamente do que no Brasil. No entanto, houve movimentos de ida e volta. Na Argentina houve movimentos de retrocesso e só agora que o Videla está sendo condenado efetivamente pelo sequestro dos bebês. Então é um processo que no Brasil foi mais lento. A história singular do Brasil é de maior conciliação de classes. Aqui é mais difícil vencer a cultura da conciliação.
 
Valor: Quais os pontos mais obscuros da ditadura que a comissão poderia ajudar a esclarecer?
 
Rosa Cardoso: Os pontos mais obscuros da história da ditadura que a comissão poderia ajudar a esclarecer são o apoio civil ao terror, a violência na área rural e no movimento sindical e o apoio e o intercâmbio do Brasil com as ditaduras do Cone Sul. Também há muito a esclarecer sobre a repressão e morte de brasileiros no exterior.
 
Valor: Que contribuição a comissão pode dar à consolidação da democracia brasileira?
 
Rosa Cardoso: Espero que a Comissão da Verdade, que vai existir por tempo curto, ajude a criar uma campanha cívica em favor de uma democracia com muito mais qualidade e solidez. Mas muito mais do que isto. Que esta campanha deixe implantada na sociedade espaços interessados em aprofundar essa democracia. Espero que as universidades tenham seus observatórios de Direitos Humanos e que esta denúncia que nós vamos fazer desse passado de brutalidade, se vincule a uma denúncia muito mais permanente da brutalidade do presente. Eu gostaria que esta Comissão da verdade deixasse instaurado um movimento muito ativo e muito participante no Brasil, onde a despolitização em geral ainda é muito grande, em relação aos direitos humanos.
 
Valor: A sra. acha que esta brutalidade que ainda existe hoje na sociedade brasileira tem muito a ver com toda a violência vivida na ditadura?
 
Rosa Cardoso: Acho que sim. A violência foi refundada por esse período de exceção. Nós temos um passado de brutalidade, escravidão, coronelismo, a grande propriedade do fazendeiro, do latifúndio, tudo isso, faz parte de uma herança que conforma a história do país. Óbvio que nós tínhamos violência nas delegacias. Havia tudo isto antes. Mas era tempo de a gente ter rompido com isso e ter se civilizado. A ditadura impediu, atrasou enormemente esse processo de civilização.
 
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