31/08/2016 - 16:21 | última atualização em 31/08/2016 - 18:09

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Racismo e reparação são debatidos em evento com exibição de filme

redação da Tribuna do Advogado

Foto: Bruno Marins   |   Clique para ampliar
“A minha infância foi roubada”. Com a frase, Aloysio Silva, o personagem principal do filme Menino 23 – Infâncias perdidas no Brasil, sintetiza sua história, que é também a de muitas crianças vítimas de uma cultura racista que o Brasil carrega.
 
No documentário, exibido em evento realizado na OAB/RJ na noite desta terça-feira, dia 30, fica explícito o quanto a discriminação de raça é enraizada no país, tendo ocorrido, inclusive, um flerte institucional com o nazismo e o racismo científico: a eugenia. A pesquisa do diretor Belisário Franca para a obra teve como ponto de partida a tese de doutorado sobre o tema elaborada pelo historiador Sidney Aguilar Filho, na Unicamp.
 
O nonagenário Aloysio é o menino que dá nome ao filme e norteia a história narrada pelo professor Aguilar Filho sobre como ele e outros 49 meninos foram retirados de um orfanato no Rio ainda crianças pela poderosa família Rocha Miranda e levados para uma fazenda em São Paulo, onde foram obrigados a trabalhar de forma escrava até sua adolescência.
 
A relação da família com o integralismo, um movimento ideológico inspirado no nazismo e no fascismo, mas com cunho nacionalista brasileiro, é destrinchada no documentário, que demonstra como a política de “higienização” baseada na ótica da “branquitude”, isto é, da padronização da cor branca, era não somente natural, como de certa forma oficial no país.
 
Isso é perceptível pelas propagandas de TV que disseminavam as idéias da eugenia, uma teoria utilizada pelo nazismo para buscar produzir uma seleção nas coletividades humanas baseada em leis genéticas.
 
A história relatada no filme é assustadora e choca justamente pela falta de registros sobre as políticas de discriminação ocorridas na época do Estado Novo. “Até eu, que milito há mais de 50 anos na área de reparação, não tinha conhecimento do caso relatado neste filme”, observou o militante histórico da luta antirracista Yedo Ferreira, no debate promovido após a exibição do documentário.
 
A mesa contou com a presença do diretor de Menino 23, Franca; e da roteirista, Bianca Lenti. O diretor do Centro de Documentação e Pesquisa da OAB/RJ, Aderson Bussinger, e o presidente da Comissão Nacional da Verdade da Escravidão Negra no Brasil, grupos que organizaram o evento, guiaram as palestras, colocando a Ordem à disposição para atuar em relação à pauta que o filme denuncia.
 
Membro da Comissão da Verdade da Escravidão Negra no Brasil do Conselho Federal da OAB, o coronel da Polícia Militar Jorge da Silva frisou a importância da memória: “Nós esquecemos nosso passado. Nossa estrutura social é extremamente racista e naturalizada. É bom que as pessoas saibam que aquilo que Hitler fez lá na Alemanha era copiado aqui. E que intelectuais brasileiros, políticos brasileiros bebiam na mesma fonte”.
 
A desembargadora aposentada Ivone Caetano reforçou o ponto, destacando outro caso relatado no filme, o de “2” (os meninos eram chamados por números), que se comportava como superior aos outros por ser empregado de dentro da casa.
 
Segundo ela, o filme chega em um momento necessário. “Depois de mais ou menos 15 anos de discussão sobre as cotas, quando vivíamos uma fase em que o negro começou a se empoderar, a conseguir ter um pouco de autoestima, agora nós estamos atravessando um período terrível de racismo, e um racismo declarado, com todas suas ramificações, sendo a mais grave delas a religiosa. E nós continuamos quase que com o olhar contemplativo sobre isso”, ponderou.
 
Também membro da comissão da OAB Nacional, o antropólogo Júlio Tavares apontou como o filme trata da “branquitude”. “Há uma memória reprodutiva do racismo que a gente pouco fala, mas que nos últimos anos tem falado mais, que é o modo pelo qual os privilégios brancos adentram corpos e almas de negros. A gente tem que apontar cruamente essa cultura de “branquitude” que vive dentro de nós e ter a coragem de verificar como ela cresce e se reproduz. Ela que construiu a noção de mundo ocidental, de mundo "europeizado" que a gente conhece. E é por aí que a questão da reparação vai ganhar mais fluidez, se for vista como necessária para uma distribuição de riqueza, uma riqueza também cultural, e que hoje é concentrada nas mãos de uma minoria de 10% da população”, observou.
 
Para Tavares, o documentário é um estudo de caso do que é a presença negra numa sociedade estratificada e perversa e, como disse a historiadora Circe Bittencourt, uma das entrevistadas no filme, "com uma elite que talvez seja a mais brilhante do mundo na competência de não ceder seus privilégios".
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