03/09/2008 - 16:06

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Posse no STJ: Britto ressalta importância de Constituição cidadã

Posse no STJ: Britto ressalta importância de Constituição cidadã


Do site do Conselho Federal e da redação da Tribuna do Advogado

03/09/2008 - Em discurso proferido na posse do ministro Cesar Asfor Rocha no Superior Tribunal de Justiça (STJ), nesta quarta, dia 3, o presidente do Conselho Federal, Cezar Britto, criticou o Estado policial que, segundo ele, se instaura no País: "A História e o bom senso nos convidam a restabelecer a lógica democrática, mostrando que a Constituição é cidadã, não é estatal". Britto lembrou também a importância de que o Quinto seja respeitado.


Leia abaixo a íntegra do discurso de Cezar Britto.


Diante deste órgão do Poder Judiciário que se convencionou chamar de Tribunal da Cidadania, não posso deixar de falar da esperança, do sentimento, do querer e da certeza dos homens e das mulheres que o criaram no histórico dia 05 de outubro de 1988, quando se promulgou a Constituição Cidadã.

Tinham a inspirá-los os valores e fundamentos da democracia, que voltavam a predominar em nosso Continente Sul-americano, depois de duas décadas de autoritarismo, em que direitos e garantias individuais haviam sido violados sistematicamente.

Não apenas aqui, mas em todo o mundo havia sinais de que a democracia e seus valores se consolidavam, com o fim da Guerra Fria e o desmonte de regimes autoritários.

Eis, porém, que, a partir do 11 de setembro de 2001, tudo começou a mudar. A História, contestando os que afirmavam que acabara, passou a impor novos e complexos desafios. Os paradigmas começam a mudar - e para pior.

Já não são os paradigmas que atestaram a vitória da Democracia e que inspiraram a sexagenária Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Após a queda das Torres Gêmeas, um novo inimigo foi declarado, o terror fundamentalista. Contra ele, passou a valer tudo, inclusive a supressão de direitos civis elementares: direito de ampla defesa e devido processo legal, direito de ir e vir, direito à privacidade, direito de livre expressão.

Dentro dessa nova maneira de enxergar o mundo, as democracias que eram tidas como as mais avançadas do planeta regrediram e passaram a sustentar uma tese diabólica: de que os princípios, direitos e garantias fundamentais, conquistados com sangue, suor e lágrimas, ao longo da história da humanidade, atrapalham o combate ao crime.

A democracia já não seria eficaz para garantir segurança.

Em nome desse combate, não há limites: prisões clandestinas, tortura, seqüestros, dentro e fora dos países em que se encontram as vitimas. Violam-se direitos humanos e o princípio da soberania e auto-determinação dos povos, expressos na Carta das Nações Unidas, há mais de 60 anos.

Não mais se defende a dignidade da pessoa humana como razão de ser do Estado. A equação inverteu-se: prevalecem as razões de Estado sobre a cidadania, relativizando valores que se supunham intocáveis, como o princípio da presunção de inocência; o direito de defesa como fator de equilíbrio na relação processual; o processo justo, público, transparente.

Senhoras e Senhores, o terrorismo não aportou no Brasil, mas lamentavelmente importamos a crise de valores que dele resultou. Não obstante nossa Constituição ter revogado a lógica autoritária e policialesca, vemos com preocupação crescente ela se restabelecer.

Também aqui já se sustenta que a lei e o devido processo legal nem sempre favorecem o combate ao crime e que, em nome de uma suposta eficácia operacional, seria admissível - e até necessário - descumpri-los. Não se trata de um ponto de vista isolado, sem conseqüência prática.

Encontra vários adeptos nos aparelhos policiais, no Ministério Público e no próprio Judiciário. Recentemente, um magistrado chegou a sustentar que leis civilizadas só fazem sentido em países civilizados, excluindo desse rol o Brasil.

Ora, se o combate à barbárie se der com mais barbárie, então tudo estará barbarizado - e não haverá justiça. Estaremos abrindo mão de uma herança milenar da civilização.

O devido processo legal, base e fundamento do Estado democrático de Direito, é uma longa, lenta e penosa construção, de cujos benefícios, testados e atestados em séculos de história, não podemos abrir mão.

E isso não se restringe a esse ou aquele caso, mas a todos, sem exceção. Quando se colocam os direitos fundamentais como óbice ao combate ao crime, o triunfo é do crime, pois proclama-se a superioridade deste ao procedimento legal, admitindo-se por extensão a superioridade do mal em relação ao bem.

Nada mais perigoso. Nada mais trágico. E nada mais falso. Somente dentro das regras democráticas, observando-se os seus ritos e procedimentos, poderemos combater com eficácia o crime, em qualquer instância que se apresente - desde o mais prosaico delito até o mais sofisticado golpe do colarinho branco.

Nesse combate - repito -  não pode haver qualquer distinção de procedimento em relação aos delinqüentes, sejam pobres ou ricos. A lei é para todos - e todos são iguais perante ela.

Senhoras e Senhores, a sociedade brasileira elegeu, vinte anos atrás, o Poder Judiciário como antídoto ao autoritarismo. Dotou-o de atribuições mais vigorosas, rigorosas e resistentes. Atribuiu-lhe prerrogativas vitais ao exercício livre da judicatura, munindo-o das condições necessárias para banir do país a lógica autoritária. Por isso causa estranheza quando parte do próprio Poder Judiciário, ainda que de forma minoritária, apóie a tese de que as "leis civilizadas só fazem sentido em países civilizados" - e admita relativizar o seu cumprimento. É essa lógica que faz do próprio Judiciário um dos avalistas da quebra dos princípios, direitos e garantias fundamentais.

O ataque comandado por setores da magistratura, do Ministério Público e da polícia à lei que tornou inviolável o direito de defesa, bem demonstra o que estou aqui a expor. Pregava-se que o Estado pode investigar, denunciar, processar e julgar sem que o cidadão tivesse o direito de defesa. Felizmente não foram escutados - e a Lei 11.767, aprovada por unanimidade pelo Congresso Nacional, foi, finalmente sancionada.

Achávamos que num país democrático sequer precisaria haver uma lei como essa. Achávamos que a Constituição-Cidadã já dava guarida à idéia de que a defesa é tão ou mais importante do que a acusação. Mas num país que confunde tortura com crime político, anistia com amnésia e em que, para alguns, portaria de delegado vale mais do que a Constituição Federal, tudo se pode esperar - até mesmo que seja necessário ajuizar, como o fizemos recentemente, um pedido de edição de súmula vinculante para que os advogados tenham acesso aos autos.

Ainda insistem, em nosso país, que é possível a convivência da democracia com processos secretos e inacessíveis ao próprio investigado. Nem Kafka.

Há também setores do Poder Judiciário que aderem à tese de que eficiência do processo se mede pela quantidade de câmeras e holofotes que atraem.

Combate ao crime não é espetáculo televisivo, novela em que vale-tudo, embora o vale-tudo acabe não valendo nada, pois os excessos são reclamados nos tribunais e o réu, quando rico, passa à condição de vítima, dificultando ainda mais sua responsabilização penal.

De quebra, contribui para a consagração da máxima absurda de que a polícia é quem prende e o Judiciário é quem solta.

Outra anomalia diz respeito ao uso perdulário do grampo telefônico, que transformou o Brasil de Estado democrático de Direito em Estado de Bisbilhotagem.

É do Judiciário a responsabilidade final por essas autorizações, que, segundo avaliação de autoridades do próprio Estado, já colocam sob o império do grampo de dez a trinta milhões de cidadãos, como se criminosos fossem.

Pior: longe desses dados chocarem, geram o oposto. Instituições do Estado, criadas para proteger a cidadania, passam a competir entre si para saber quem grampeia mais, quem bisbilhota mais, numa gincana absurda, sustentada com os impostos do contribuinte.

Instala-se então a Grampolândia - e, com ela, um paradoxo: o guardião da Constituição é o Supremo Tribunal Federal, mas o Guardião do Estado é uma engenhoca eletrônica de bisbilhotagem, disputadíssima pelo Ministério Público e polícias, em todas suas instâncias: Federal, Rodoviária, Civil.

É o Estado de Bisbilhotice permitido, cobiçado e estimulado, a provocar um dos mais graves ataques à República e à democracia de que temos notícia.

Há dias, o país foi surpreendido pela denuncia de que ninguém menos que o presidente de um dos Poderes da República - o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes -, foi grampeado. O mais grave: acusa-se que o grampo teria sido de autoria da Agência Brasileira de Inteligência.

O Estado grampeando o Estado. A denúncia acrescenta ainda que o mesmo procedimento atingiu outras figuras eminentes da República: ministros, assessores da própria Presidência da República, parlamentares. Confirma-se, assim, a advertência que fiz quando da posse do ministro Gilmar Mendes no STF, criticada naquela oportunidade pelos céticos de plantão. Ninguém está a salvo em tal ambiente.

A única diferença é que, na época, a ABIN ainda não tinha adquirido o seu próprio Guardião. Hoje, segundo o ministro da Defesa, já o tem, o que a faz exorbitar de sua missão institucional de órgão de inteligência para adentrar o campo da espionagem.

Desnecessário dizer da gravidade de tal fato, o que representa em termos de degradação, descrédito e perda de substância democrática. É tão grave que exige das instituições providências corretivas imediatas: a adoção de um pacto em defesa dos princípios, direitos e garantias fundamentais.

O Executivo, com a exemplar responsabilização penal, administrativa e disciplinar dos autores. O Legislativo, com a urgente aprovação de leis que proíbam o abuso de autoridade e a implantação do Estado de Bisbilhotice que ameaça a todos. O Judiciário a adoção de medidas que restabeleçam o seu papel de guardião da Constituição Federal, sem descuidar da necessária atuação do CNJ. 

Ministro César Asfor Rocha, esses são os desafios a enfrentar, os dilemas que o Poder Judiciário e o seu Tribunal da Cidadania precisam resolver. A História e o bom senso nos convidam a restabelecer a lógica democrática, mostrando que a Constituição é cidadã, não é estatal.

Se insistirem em sustentar que os princípios, direitos e garantias fundamentais atrapalham, então a Constituição Cidadã e toda a luta social que a precedeu estarão revogadas, o que seria um desastre.

Como se vê, os desafios são muitos. Para superá-los, é necessária a união de esforços. É hora de superarmos conflitos, vaidades e a inútil discussão de quem é maior e melhor para o Brasil. Somos iguais e assim devemos tratar e ser tratados, na missão comum de defender intransigentemente o Estado Democrático de Direito.

Daí o nosso empenho para que Constituição seja observada não apenas em relação a questões de maior impacto público, mas também em questões que envolvem as nossas instituições, como é o caso do preenchimento de vaga destinada ao chamado Quinto Constitucional nesta Corte.

O Tribunal comandado por Vossa Excelência não pode ter sua composição desfalcada do representante da advocacia, do porta-voz da cidadania, do profissional estatutariamente comprometido com a defesa das instituições jurídicas, da Constituição e da democracia. Em suma, o profissional talhado para defender os tão atacados princípios, direitos e garantias fundamentais.

O STJ, que já reconheceu que os nomes indicados pela OAB preenchem os requisitos constitucionais necessários, não pode mais adiar essa decisão.

E Vossa Excelência, que aqui chegou por meio do Quinto Constitucional, tem agora a responsabilidade de não interromper a participação e a colaboração da advocacia na administração da Justiça.

Muito obrigado.

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