09/09/2013 - 12:39 | última atualização em 09/09/2013 - 17:43

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Pesquisadores falam luto suspenso de familiares de desaparecidos

jornal O Globo

No dia 22 de abril de 1974, Ana Rosa Kucinski foi presa junto com o marido, Wilson Silva, em São Paulo. Os dois nunca mais apareceram. No dia 14 de junho de 2008, quando dirigia de volta para casa, na Barra da Tijuca, a engenheira Patrícia Amieiro teve seu carro alvejado, caiu no Canal de Marapendi e seu corpo desapareceu. Policiais militares foram acusados da sua morte e aguardam julgamento. No dia 14 de julho de 2013, o ajudante de pedreiro Amarildo de Souza foi levado para a sede da Unidade de Polícia Pacificadora na favela da Rocinha. Morador da comunidade, ele nunca mais foi visto depois que entrou no prédio. A Divisão de Homicídios investiga o caso.
 
As quase quatro décadas que separam os casos de Ana Rosa, uma professora da USP, e de Amarildo mostram que, apesar da transição da ditadura militar para a democracia, a prática do desaparecimento forçado continuou, embora com características diferentes. O sociólogo Fábio Araújo, que defendeu na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) a tese de doutorado Das conseqüências da 'arte' macabra de fazer desaparecer corpos: violência, sofrimento e política entre familiares de vítimas de desaparecimento forçado afirma que houve uma mudança no perfil dos "desaparecíveis" Se no regime militar eram principalmente jovens de classe média e estudantes que militavam em organizações de esquerda, agora são os mais pobres e moradores das periferias.
 
Em seu trabalho, o sociólogo teve muitas dificuldades para encontrar dados sobre desaparecimentos forçados. Segundo Araújo, foram registrados 92 mil desaparecimentos no estado do Rio de Janeiro desde 1990, de acordo com as estatísticas oficiais. No entanto, esses números incluem todos os casos de sumiço, não só os forçados. Na realidade, a maioria dos casos não é sequer notificada. A área cinza da segurança pública se estende também a outros crimes. A OAB-RJ divulgou, como parte da sua campanha "Desaparecidos da democracia" lançada em 27 de agosto, que mais de 10 mil pessoas foram mortas sob suspeita de confronto com a polícia entre 2001 e 2011, segundo estudo sociólogo Michel Misse, professor da UFRJ. Um número mínimo foi investigado e encaminhado para a Justiça.
 
Entrevistei uma defensora pública que trabalha em vários casos de desaparecimento envolvendo policiais e milícias. Os familiares procuravam a defensoria e eram orientados a fazer o boletim de ocorrência, que é o primeiro passo para abrir uma investigação. Mas aí o caso se encerra, porque eles têm medo de procurar uma delegacia afirma Araújo. O impacto nas famílias é pior do que o dos casos de homicídio porque fica uma espécie de morte inconclusa. Os familiares vão da esperança à resignação, muitos ficam numa busca eterna. A busca se torna a rotina. A violência não termina no desaparecimento, ela recomeça em cada repartição pública durante esse processo.
 
Dor que não acaba
 
Durante uma audiência pública sobre os desaparecidos, realizada em agosto na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), Adriano Amieiro, muito emocionado, afirmou que o mais duro era conviver com "essa dor que não passa nunca". O jornalista e escritor Bernardo Kucinski, irmão de Ana Rosa, descreve algo semelhante. Autor do romance "K." (Expressão Popular), em que narra a busca de um pai em busca da filha desaparecida na ditadura militar, Kucinski diz que escrever a obra foi uma espécie de catarse.
 
Escrevi tudo muito rápido, foi saindo um episódio após o outro. Para mim, esse já era um capítulo morto e superado, mas aí você vê que não tem nada superado. Estou com 75 anos e está tudo aí de novo. O livro provoca reações, as pessoas querem falar sobre o que aconteceu e você acaba revivendo tudo isso. É uma coisa que não acaba nunca conta o jornalista. A aceitação da morte acontece muito depois do desaparecimento. Numa mesma famí
 
lia ocorre em momentos diferentes para cada um. Esse método é perverso porque você mesmo precisa "matar" a pessoa para continuar vivendo.
 
A psicanalista Maria Rita Kehl, que faz parte da Comissão Nacional da Verdade, vê dois fatores para a impossibilidade de se encerrar o luto. Primeiro, a falta de um corpo para velar e enterrar. O segundo é a culpa pela decisão de encerrar a busca do desaparecido.
 
A morte é um evento tão inaceitável para qualquer um, e a morte violenta ainda mais, que precisamos velar o corpo morto para conseguir acreditar nela. Sem o corpo, fica-se com a sensação de que a realidade da morte foi decidida não por quem causou o desaparecimento, mas pelos que desistiram de buscar o desaparecido. Por isso o luto dos familiares é uma ferida que nunca deixa de doer diz a psicanalista.
 
No Brasil, política estratégica
 
Na década de 1970, o desaparecimento forçado foi amplamente utilizado por governos autoritários na América Latina. Na Argentina, mais de 20 mil pessoas desapareceram e esta foi a política repressiva por excelência, como aponta a cientista política Pilar Calveiro (ver entrevista ao lado). No Brasil, há mais de 140 desaparecidos da ditadura militar. A pesquisadora Janaína de Almeida Teles, doutora em História Social pela USP, explica que a repressão no regime foi seletiva, pois os militares sempre estiveram preocupados com a sua legitimação e a manutenção de uma "legalidade de exceção" Por isso mantiveram o Congresso Nacional funcionando e as eleições, apesar das diversas restrições.
 
Assim, os desaparecimentos no Brasil alcançaram o seu auge em 1974, quando foram registrados 54 casos, mas nenhuma morte oficial. Desde o início da década de 1970, uma rede nacional e internacional de denúncias de violações de direitos humanos se formou, o que não era bom para o regime e sua aparente legalidade.
 
Nesse momento está se preparando a entrada do Geisel como presidente (que ocorre em março de 1974), uma aparente abertura. O Geisel tinha que aparecer como um estadista moderado. Os mortos não podiam aparecer. Então, você começa a ter mais desaparecidos para diminuir ao máximo as provas. A Guerrilha do Araguaia também durou muito mais do que eles imaginavam e, em lugar distante, era mais fácil desaparecer com os corpos afirma Janaína.
 
Os especialistas concordam que a impunidade dos agentes do Estado nos crimes cometidos rio passado é a semente para a violência do presente. Janaína relembra que a Lei de Mortos e Desaparecidos, de 1995, impôs o ônus da prova aos parentes das vítimas: eles passaram a ser responsáveis por reunir indícios que justificassem a abertura de investigações. Superada esta etapa, os familiares ainda precisam esperar a ação do Ministério Público, pois só ele tem poder de abrir ações criminais.
 
Já Maria Rita Kehl argumenta que a imposição pelos militares, ainda no poder, de uma anistia que deixava impune assassinos e torturadores teve efeitos graves, como a continuação desses mesmos crimes, quase com a mesma impunidade. Para Pádua Fernandes, professor de teoria do Direito na Universidade Nove de Julho, um processo de juízo e reparação não é vingança.
 
As famílias das vítimas não pedem que a sorte de seus parentes desaparecidos se repita com os algozes. Elas desejam a justiça para que os processos, com suas garantias formais, dêem o recado aos agentes da repressão, de ontem e de hoje, de que tais abusos não devem mais acontecer afirma o professor. A militarização da polícia faz parte do triste legado da ditadura militar. Ela significa que os policiais são treinados para combater um inimigo, não proteger os cidadãos. E quem é o inimigo? Ao tentar justificar a investida da PM contra milhares de pessoas nas ruas, o ex-comandante da corporação revelou candidamente: é a própria população. Qualquer sistema que considere o povo como inimigo é incompatível com a soberania popular e, por essa razão, é irreconciliável com a democracia.
 
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