27/05/2014 - 09:56

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Militares viram réus por morte de Rubens Paiva

jornal O Globo

A professora universitária Vera Paiva acredita que viveu ontem o primeiro dia "de um novo Brasil" Passados 43 anos da morte e desaparecimento do corpo de seu pai, Rubens Paiva, após ser preso por agentes da Aeronáutica em 20 de janeiro de 1971, ela finalmente recebeu a notícia aguardada todo esse tempo pela família: a Justiça Federal recebeu a denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal (MPF) contra cinco militares acusados de assassinato e ocultação de cadáver do ex-deputado federal.
 
Com isso, viram réus o general reformado José Antônio Nogueira Belham, os coronéis reformados Raymundo Ronaldo Campos e Rubens Paim Sampaio e os sargentos e irmãos Júrandyr e Jacy Ochsendorf e Souza.
 
O juiz federal Caio Márcio Gutterres Taranto explicou, na decisão, que a denúncia do MPF trata de crimes previstos no Código Penal não protegidos pelas disposições da Lei da Anistia concedida em 1979. Para o magistrado, o Artigo 1ª da Lei de Anistia (Lei 6.683/79) não perdoa os crimes previstos na legislação comum, mas apenas os crimes políticos ou conexos a esses, "punidos com fundamento em atos institucionais e complementares" Na ação penal, os acusados vão responder também pelos crimes de associação criminosa armada e fraude processual.
 
"A decisão, surpreendentemente rápida, é um indicador de que o Brasil está mudando para melhor. É o primeiro dia de um novo mundo. Seguindo a tendência internacional da Justiça de Transição, está sendo quebrado o cinturão de impunidade que protegia os torturadores", celebrou Vera.
 
Outro fundamento alegado pelo juiz é o de que a morte de Paiva se insere "na qualidade de crimes contra a humanidade", que impede a incidência da prescrição: "O homicídio qualificado pela prática de tortura, a ocultação do cadáver (após tortura), a fraude processual para a impunidade (da prática de tortura) e a formação de quadrilha armada (que incluía a tortura em suas práticas) foram cometidos por agentes do Estado como forma de perseguição política. A esse fato, acrescenta-se que o Brasil reconhece o caráter normativo dos princípios de Direito costumeiro internacional preconizados pelas leis de humanidade e pelas exigências da consciência pública"
 
Foi a segunda decisão, em menos de um mês, determinando a abertura de ação penal contra crimes praticados por agentes do regime militar. Há duas semanas, a juíza federal Ana Paula Vieira de Carvalho também recebeu a denúncia contra cinco militares e um civil acusados pelo atentado a bomba no Riocentro, em 30 de abril de 1981: o general reformado Newton Cruz, chefe do SNI à época, o coronel reformado Wilson Machado, principais envolvidos no caso, além do ex-delegado Cláudio Guerra, do major Divany Carvalho Barros e dos generais reformados Nilton Cerqueira e Edson Sá Rocha.
 
Em tentativa anterior de levar os acusados pelo Riocentro a julgamento, o Ministério Público Militar esbarrou no entendimento do Superior Tribunal Militar (STM), confirmado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), de que o crime estava coberto pela Lei da Anistia.
 
Já o caso Rubens Paiva chega pela primeira vez à Justiça. Suspeito de intermediar a troca de correspondência entre exilados no Chile e seus contatos no Brasil, o ex-deputado foi preso em casa, no Leblon, no início da tarde de 20 de janeiro, por agentes do Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (Cisa). No mesmo dia, após interrogado, foi transferido para o Destacamento de Operações de Informações do 1º Exército (DOI-I), na Rua Barão de Mesquita, onde não resistiu a "selvagens torturas" como concluiu o MPF, após três anos de investigação. O corpo da vítima nunca foi localizado.
 
Em depoimento à Comissão Nacional da Verdade (CNV), ano passado, o coronel da reserva Armando Avólio Filho, ex-integrante do Pelotão de Investigações Criminais da Polícia do Exército (PIC-PE), revelou ter visto, por uma porta entreaberta, um tenente identificado como Antônio Fernando Hughes de Carvalho torturando Paiva. Avólio disse que, logo após testemunhar a cena, chamou seu chefe imediato, o então major Ronald José Baptista de Leão, e levou o caso ao comandante do DOI, o também major Belham, e ao comandante da PE, coronel Ney Fernandes Antunes. Em carta à CNV, Leão confirmou o episódio. No início deste ano, ele faleceu.
 
O general reformado Raymundo Ronaldo Campos revelou, em depoimento ao Ministério Público, que, logo após a morte do ex-deputado, o Exército montou uma farsa, ao sustentar que Paiva teria sido resgatado por seus companheiros "terroristas" quando era transportado por agentes do DOI no Alto da Boa Vista. Campos, que era capitão, dirigia o veículo supostamente atacado e estava na companhia dos sargentos Jacy e Jurandir. Além dos depoimentos, documentos arrecadados na casa do ex-coronel Júlio Molinas Dias, assassinado em 2012 durante um assalto, comprovaram que Paiva, após ser preso pela Aeronáutica, foi levado ao DOI.
 
Ao cruzar depoimentos de militares e ex-presos com documentos históricos, os procuradores da República responsáveis pelo caso decidiram denunciar o general Belham e o coronel reformado Paim Sampaio, ex-agente do Centro de Informações do Exército (CIE), que estaria no DOI quando Paiva chegou, por homicídio triplamente qualificado, ocultação de cadáver e associação criminosa armada. Já o coronel Raymundo Ronaldo Campos, oficial de plantão no DOI-I no dia 22 de janeiro, e os sargentos Jurandir e Jacy foram acusados de fraude processual e associação criminosa armada.
 
Em março, o tenente-coronel reformado Paulo Malhães revelou ao Globo que, na condição de agente do CIE, recebeu em 1973 a missão de desenterrar no Recreio dos Bandeirantes o corpo de Paiva e dar um destino definitivo a ele. Em depoimentos posteriores, mudou a versão.
 
Defesa diz que tentará bloquear a ação
 
Na decisão que acolheu a denúncia, o juiz entendeu que o conceito de crime contra a humanidade inclui "as condutas de homicídio, deportação, extermínio e outros atos desumanos cometidos dentre de um padrão amplo e repetitivo de perseguição a determinado grupo da sociedade civil, por razão política. Nesse contexto, o sentido e conteúdo de crime contra a humanidade deve ser extraído ponderando-se o histórico de militância política da vítima, inclusive sua atuação na qualidade de deputado cassado pelo Movimento de 1964".
 
A decisão da Justiça Federal conclui afirmando que "a denúncia ofertada encontra-se devidamente acompanhada de documentos e testemunhos aptos ao recebimento da denúncia em desfavor dos acusados. Merece ênfase a declaração manuscrita de Cecília Viveiros de Castro, a declaração de Marilene Corona Franco ao MPF, o depoimento de Cecília Viveiros de Castro à Polícia Federal em 11/09/1986, o recibo de entrega do automóvel da vítima e o conjunto de documentos apreendidos por força da medida cautelar (de busca e apreensão na casa do Paulo Malhães, morto em 24 de abril)."
 
Advogado de três dos acusados (Belham, Paim e Campos), Rodrigo Roca tentará bloquear a ação: "Quando forem citados, vamos oferecer a defesa preliminar e, paralelamente, faremos um habeas copus, com o objetivo de bloquear a ação penal, tanto pela questão da prescrição dos crimes quanto pela incidência da Lei da Anistia".
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