09/09/2013 - 10:01 | última atualização em 09/09/2013 - 11:23

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Mais de 60% das pessoas que somem reaparecem

site do jornal O Globo

Foram 11 dias escondida na casa de uma colega depois de se desentender com a mãe, que a proibia de frequentar bailes funk na Rocinha. Mas até saber o paradeiro de Y., então com 14 anos, a manicure Sueli da Silva, de 29, não teve opção: registrou o sumiço da filha na Seção de Descoberta de Paradeiros, da Divisão de Homicídios, a mesma que investiga o caso do ajudante de pedreiro Amarildo de Souza, visto pela última vez em 14 de julho, ao ser levado por PMs à sede da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), na mesma comunidade. O registro do sumiço de Y. foi feito em 18 de abril deste ano, mas, apesar de a jovem ter voltado para a família, ainda engrossa as estatísticas de desaparecidos divulgadas pelo Instituto de Segurança Pública (ISP), da Secretaria de Segurança. Por não serem atualizados, os números não refletem a realidade do Rio.
 
Perfis de desaparecidos traçados por delegada
 
  • Quem se droga e rompe com a família
     
  • Jovens que fogem
     
  • Idosos e doentes mentais que não lembram o caminho de volta
     
  • Cônjuges que abandonam o lar
"Minha filha fugiu quatro vezes de casa. Não houve nada. Foi coisa da cabeça de adolescente. Ela fugiu na véspera de completar 15 anos. Tinha comprado tudo para a festa dela, fiquei muito chateada. Agora dei um ultimato: se fugir de novo, não irei atrás dela", contou Sueli, admitindo não ter avisado às autoridades sobre a volta da filha. "Não os procurei por esquecimento. Mas a polícia chegou a me ligar para saber ser ela tinha aparecido. Aí eu confirmei".
 
Os parentes das vítimas, na maioria das vezes, não retornam à delegacia para comunicar o reaparecimento. Segundo a delegada responsável pela Seção de Descoberta de Paradeiros, Elen Souto, mais de 60% dos desaparecidos voltam para casa. Por trás das estatísticas, a delegada explica que há um esforço do estado, muitas vezes em vão, justamente por causa dessa falta de comunicação das famílias. Uma comparação entre os dados do ISP dos períodos de janeiro a julho de 2012 e 2013 mostra um aumento de 7,9% no número de casos. Em relatório divulgado pelo instituto na última quinta-feira, houve 509 desaparecimentos em julho.
 
Apesar de o número de desaparecidos ser, na realidade, bem menor, pois não há baixa nos índices quando as pessoas reaparecem, uma corrente de pesquisadores levanta a hipótese de os homicídios estarem caindo porque estão migrando para as estatísticas de desaparecimento. O presidente do ISP, coronel Paulo Augusto Souza Teixeira, refuta essa tese. Numa análise de 2009 a 2012, após a pacificação, a redução acumulada dos homicídios chega a 3.979, o que representa uma diminuição de quase mil por ano, enquanto o número de desaparecidos cresceu em menos de 500 casos anualmente, fechando o mesmo período com 1.940 registros. Com base nos índices e perfis diferenciados das vítimas nessas modalidades, Teixeira assegura não haver probabilidade de transferência de casos. Isso porque tanto os números quanto os perfis dos dois tipos de vítimas são diferentes.
 
"Há um equilíbrio entre os sexos masculino e feminino de quem desaparece. Nos primeiros meses deste ano, por exemplo, foram 60% de homens e 40% de mulheres. Já nos homicídios, a predominância é de pessoas do sexo masculino. Até na faixa etária dos desaparecidos há um certo equilíbrio", disse Teixeira.
 
Sai para comprar cigarro e não volta
 
Em 2009, o ISP preparou um estudo detalhado, intitulado Desaparecimentos, o papel do policial como conscientizador da sociedade, revelando que 71,3% das vítimas reaparecem - conclusão semelhante à da delegada Elen Souto, que calculou em mais de 60%. Ela acha que o maior consumo de crack contribuiu para a alta dos desaparecimentos:
 
Não há solução a curto prazo: ela passa pela necessidade de os órgãos de segurança ganharem maior credibilidade junto à população, e isso só se dará pela continuidade de bons trabalhos e resultados
Breno Melaragno
presidente da Comissão de Segurança Pública da OAB/RJ 
"O número de pessoas que reaparecem pode ser maior. Infelizmente, poucos avisam que a vítima retornou. A polícia procura quem fez o registro, mas este, muitas vezes, fornece endereço com dados errados ou troca o número do celular. Com o tempo que perdemos, poderíamos estar investigando um caso no qual a pessoa realmente está desaparecida ou até morta".
 
Elen vê quatro perfis de desaparecidos: quem se droga e rompe com a família; jovens que fogem; idosos e doentes mentais que não lembram o caminho de volta; e cônjuges que abandonam o lar.
 
"A história do marido que sai para comprar cigarro e não volta ainda existe. Não me esqueço de uma senhora cega, mãe de sete filhos, que registrou o desaparecimento do marido. Ao buscarmos a identidade no cadastro, descobrimos que ele havia atualizado o documento. Quando o localizamos, ele havia abandonado a mulher para viver com outra. Há mulheres que fazem o mesmo", disse Elen, lembrando de uma que saiu no carnaval e só voltou para o marido depois da folia. "Ele foi um dos poucos que retornaram para avisar, apesar do constrangimento".
 
A rotina da inspetora Ana Carolina Cícero, na Zona Oeste, é pesada. Pelos dados de julho do ISP, houve 24 sumiços em Campo Grande e 23 em Bangu. Juntos, esses bairros somam quase 10% do total de desaparecidos no estado.
 
"Temos de exaurir as chances de encontrar o paradeiro da vítima. Fazemos uma pesquisa minuciosa, torcendo para encontrar a pessoa com vida, o que, em geral, acontece. Há pessoas que são contumazes em fugir. Já soube de um jovem que fugiu seis vezes. Ele tomava medicamentos controlados. Tem gente que vira moradora de rua. E há situações em que o parente faz o registro para dar entrada na Justiça na certidão de ausência, porque o desaparecido tem bens. É preciso muito cuidado", contou.
 
A economista Luba Lazouska procura a governanta Luzinete Ferreira da Silva desde 21 de agosto de 2010. Tratada como membro da família, Luzinete, então com 73 anos, saiu da casa da patroa por volta das 23h, em Copacabana, apenas com a roupa do corpo. Luba peregrinou por hospitais, abrigos, asilos e Instituto Médico-Legal.
 
"Acho que ela surtou. Certa vez, disse que tinha vontade de entrar mar adentro. Se ela aparecesse, eu avisaria à polícia", afirmou Luba.
 
O sociólogo Gláucio Soares, que foi consultor na pesquisa do ISP de 2009, explicou que estudos em vários países indicam que boa parte dos desaparecimentos é temporária e voluntária. "No Brasil, perdemos muito porque comunicamos o desaparecimento, não o reaparecimento. Estudos feitos com jovens que estão na rua, drogando-se ou prostituindo-se, mostram que eles, na maioria dos casos, fogem de casa ou são jogados fora. Essa pessoa entra para o arquivo de desaparecidos, mas, na verdade, ela foi expulsa de casa".
 
Também há subnotificações: casos de pessoas levadas por traficantes e policiais que não são informados, porque os parentes temem represálias. A cientista política Maria Helena Moreira Alves acaba de lançar o livro Vivendo no fogo cruzado, que trata do tema:
 
"Nunca vamos saber o número real de desaparecidos. Ouvi relatos de moradores de comunidades de que até nos caveirões a polícia leva os corpos. Os matadores usam uma faca com lâmina dos dois lados para arrancar as vísceras, a fim de que o corpo afunde no rio. Assim, some-se com o corpo. Ele não aparece nunca mais".
 
Conselheiro e presidente da Comissão de Segurança Pública da OAB/RJ, Breno Melaragno também crê que os números de desaparecimentos no Rio não refletem a realidade, seja pela subnotificação ou pela não comunicação do retorno. Para ele, há uma "cifra oculta" dos desaparecimentos:
 
"Acredito que ela seja bem superior, pela realidade de extrema violência cotidiana a que é submetida grande parte da população. Não há solução a curto prazo: ela passa pela necessidade de os órgãos de segurança ganharem maior credibilidade junto à população, e isso só se dará pela continuidade de bons trabalhos e resultados".
 
O presidente do ISP, coronel Paulo Augusto Souza Teixeira, reconhece que os números não retratam a realidade. Ele defende um debate sobre o assunto e propõe a criação de um banco nacional de pessoas desaparecidas, a exemplo do cadastro nacional de veículos roubados: "A preocupação com as pessoas tem que ser maior do que com o patrimônio".
 
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