06/05/2014 - 09:59

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"Justiçamentos" fazem 20ª vítima só neste ano

jornal Correio Braziliense

Espancada depois de ser confundida com uma sequestradora de crianças, Fabiane Maria de Jesus, de 33 anos, é a 20ª pessoa assassinada em uma situação de justiçamento público neste ano no Brasil. Moradora do Guarujá (SP), a dona de casa morreu na manhã de ontem devido a um traumatismo craniano, dois dias depois de ser agredida. Desde fevereiro, pelo menos outras 37 pessoas foram vítimas de linchamento no país. Especialistas sugerem que a repercussão do vídeo de um adolescente do Rio de Janeiro, agredido a pauladas e amarrado nu a um poste no fim de janeiro, tenha desencadeado uma onda de crimes.
 
Segundo a família, Fabiane foi alvo das agressões a partir da publicação em uma rede social do suposto retrato falado de uma mulher que sequestrava crianças para utilizá-las em rituais satânicos no Guarujá. Familiares e a polícia afirmaram que a morte da dona de casa foi resultado de um boato. "Não foi registrado nenhum sequestro de criança no Guarujá. Esse foi um boato nas redes sociais que veiculou em várias localidades e chegou aqui. São fatos totalmente inverídicos", argumentou o delegado Luiz Ricardo Lara, do 1º Distrito Policial da cidade do litoral paulista.
 
Depois de serem notificados da morte da dona de casa, familiares da vítima foram ontem à delegacia para entregar as imagens chocantes do espancamento e também apontar nomes suspeitos de participação do crime. O delegado disse ontem que agentes da polícia já estavam em campo para apurar os autores do linchamento, que serão indiciados por homicídio.
 
O advogado da família, Airton Sinto, disse que Fabiane foi agredida por pessoas que teriam visto, na página Guarujá Alerta, hospedada em uma rede social, o retrato falado de uma mulher que estaria sequestrando crianças em Guarujá e pensaram que se tratava da dona de casa. Sinto declarou que o autor da página na internet ainda não foi identificado, mas entende que o site foi responsável pelo crime.
 
"A gente precisa levantar o debate em relação à irresponsabilidade das pessoas que divulgam o que quiserem nos sites de relacionamento. Eles arrasaram uma família. Eu tenho certeza de que quem administra essa página não tinha intenção de matar uma mulher, mas é responsável na medida de sua culpabilidade." Em nota, a equipe do portal Guarujá Alerta se negou a falar sobre o assunto. "Por ora, não nos manifestaremos sobre esse assunto para não atrapalharmos o trabalho da polícia."
 
Selvageria
 
O Brasil vive uma barbárie em série de linchamentos desde a notícia de que um adolescente foi espancado por cerca de 15 homens e amarrado nu a um poste no Bairro Flamengo, Zona Sul do Rio de Janeiro, em 31 de janeiro. Desde fevereiro, já foram divulgadas informações em portais de notícias de 36 casos de espancamentos coletivos em 15 dos 26 estados e no Distrito Federal. Dezenove deles resultaram na morte da vítima. A média é de um caso a cada oito dias.
 
Para a socióloga e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP) Ariadne Natal, é preciso ter cuidado ao falar de aumento ou decréscimo de casos ao longo do tempo, pois a variação no total de notícias pode ser decorrência somente de um maior ou menor interesse da imprensa pelo tema em determinado momento. Uma elevação nos registros pode ainda, segundo a pesquisadora, resultar da maior publicidade dos casos, que teria como efeito colateral a difusão do linchamento no imaginário da população como um recurso de justiça em situações de aumento de criminalidade e fraca resposta do Estado.
 
Ariadne Natal ressalta, entretanto, que independentemente dos motivos, não há dúvida de que multidões fazendo "justiça com as próprias mãos" revelam um descrédito da população com as instituições responsáveis pela manutenção do Estado de direito.
 
"A linguagem do linchamento é pública. A intenção é ir ao extremo da violência para mostrar descontentamento com o Estado, por isso não basta espancar, matar. Tem que expor o corpo em praça pública e, nos tempos atuais, nas redes sociais", analisa. Isso explica, segundo a pesquisadora, o fato de muitos casos de linchamento serem fotografados e filmados para, depois, serem compartilhados.
 
Barbárie recente
 
Veja alguns casos de linchamentos praticados desde o início deste ano em diversas cidades do país:
 
  • 31 de janeiro
    Um adolescente negro foi agredido a pauladas e amarrado nu a um poste, no bairro Flamengo, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Três homens que chegaram em motos e se identificaram como "Os Justiceiros" praticaram a agressão, justificando que o jovem praticava furtos no bairro.
     
  • 17 de fevereiro
    Um adolescente de 16 anos teve pés e mãos amarrados depois de tentar roubar uma moto no Setor Alto da Glória, em Goiânia. O assaltante foi agredido por cerca de 40 pessoas até que a Polícia Militar chegasse ao local.
     
  • 18 de fevereiro
    Depois de assaltar uma mulher no Setor Leste Universitário, em Goiânia, um rapaz de 20 anos foi rendido e agredido por populares que testemunharam o crime. No mesmo dia, um suspeito de roubar uma casa no Setor Vila Regina, em Goiânia, foi agredido por moradores que viram a tentativa de assalto.
     
  • 23 de fevereiro
    Os jovens Felipe Rodrigues Felício dos Santos, de 18 anos, e Danillo Alves de Oliveira, de 19 anos, foram agredidos ao tentar roubar um carro no Setor Pedro Ludovico, em Goiânia. Quando a Polícia Militar chegou ao local, encontrou os assaltantes amarrados e com escoriações pelo corpo.
     
  • 24 de fevereiro
    Um homem foi imobilizado por um adolescente de 16 anos, após roubar um celular em Franca, no interior de São Paulo. Lucas César Oliveira, de 22 anos, fugia por um campo de futebol, quando levou um "mata-leão" e sofreu um infarto. Morreu no dia seguinte.
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