05/08/2013 - 10:09 | última atualização em 05/08/2013 - 10:19

COMPARTILHE

Para ativista ligada a crianças de rua, pouca coisa mudou após Candelária

jornal O Globo

A artista plástica Yvonne Bezerra de Mello, de 65 anos, foi a primeira pessoa a chegar à calçada da Igreja da Candelária depois que, na noite de 23 de julho de 1993, seis crianças e dois adultos foram assassinados por policiais militares. Ela conhecia o grupo porque desenvolvia um trabalho de pedagogia com jovens carentes. Vinte anos depois da chamada chacina da Candelária, Yvonne diz que pouca coisa mudou. Para ela, há um processo crescente de "desestruturação da sociedade" que contribui para o abandono dos jovens e novos assassinatos. Yvonne continua trabalhando na ONG Uerê, na Maré, que fundou após a chacina e promove a educação de crianças e adolescentes de favelas.
 
Vinte anos depois, o que restou da chacina da Candelária?
 
Só restou história. Na época, o Rio quase não tinha abrigos para menores. A partir daquele episódio, construíram-se alguns. Naquele ano, entraram no Brasil US$ 53 milhões (em doações) para organizações que trabalhavam com meninos de rua. No entanto, não houve políticas públicas. Você tem o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), mas que ainda não foi totalmente implementado. Tem os Conselhos Tutelares, que foram um ganho, mas ainda insuficientes na maioria das cidades para lidar com a carência de serviços para crianças. Vinte anos depois, a situação não melhorou.
 
Quem falhou?
 
O Estado falhou. A desorganização social é grande. Primeiro, um conjunto enorme de meninas de 11 ou 12 anos tendo filhos. Cerca de 32% dos partos são de meninas de 10, 11 e 12 anos. Quem cria são os vizinhos, os avós. As crianças já crescem desestruturadas, é impressionante o número de crianças que não têm a figura masculina na família. Hoje as pessoas vão aos Conselhos Tutelares e dizem "não quero mais ficar com esse menino" "não agüento mais" E os entregam. Ninguém quer mais tomar conta.
 
Aí não seria falha das famílias?
 
É do Estado, que não está educando essas crianças para se tomarem cidadãs que possam cuidar das suas famílias. Não existe prevenção de DST nas escolas. Não se fala de orientação sexual. Há uma desorganização total no meio familiar que leva as crianças para as ruas, a entrar para o tráfico, a sair da escola. As crianças precisam de uma escola onde possam falar, se colocar, compreender o que se passa no mundo. Isso não acontece. No Brasil,temos uma escola do século XIX, uma escola curricular, não cidadã.
 
E o que mudou na sociedade civil após a chacina?
 
Após a Candelária não mudou nada na cabeça da sociedade. Só se acirraram os ânimos. Eu era descrita como louca, como alguém que educava bandido. E isso acontece ainda hoje. Quando houve o caso dos dez mortos da Maré, este ano, numa incursão do Bope, um menino que freqüentava a Uerê foi morto. O Jônata tinha 15 anos e levou um tiro, quando não havia conflito. Dei declarações na imprensa, e, no dia seguinte, houve uma forte reação dos leitores, que diziam que "ele era bandido" Para a sociedade, criança de favela é bandida. A idéia de cidade partida do [jornalista] Zuenir Ventura ainda existe.
 
Houve uma melhora para crianças e adolescentes de favelas com a implantação das UPPs?
 
Dois milhões de pessoas vivem em favelas no Rio, e ainda há pouquíssimas pacificadas (atualmente, seriam 33). As pessoas acham que, com a pacificação, a polícia entra, e acaba tudo, de repente todos passam a viver como na Avenida Vieira Souto. A pacificação entra para combater gente armada, mas ela não entra para combater o tráfico de drogas. Na cabeça das crianças, continua tendo gente armada dentro das comunidades. O fato de ter alguém armado na porta, seja polícia, seja bandido, é a mesma coisa, porque na porta da sua casa e da minha não tem ninguém armado.
 
Mas o policial é representante do Estado. É diferente do traficante, não?
 
A polícia teria que entrar, mas não ficar. Teria que ser substituída por serviços. Mas essa política de ocupar e deixar a comunidade não vingou, o tráfico armado volta a ocupar. Você entra com a Polícia Militar, mas aí tem que trazer uma série de organizações da sociedade para que a comunidade comece a funcionar como bairro. E isso não aconteceu. Ou melhor, tem acontecido muito devagar.
 
O caso do Complexo do Alemão é um exemplo disso?
 
Não só o do Alemão, como o da Cidade de Deus e vários outros. Outro dia eu subi numa favela na Tijuca, que é pacificada, e fiquei apavorada. Até chegar ao local a que eu me dirigia passei por umas quatro bocas de fumo.
 
O tráfico continua cooptando jovens da mesma maneira?
 
Exatamente igual. O tráfico de drogas não acabou. Ando por várias favelas, pacificadas ou não. Entre as pacificadas, não passei por nenhuma que não tivesse uma boca de fumo aberta. Isso é um canal para a criança ver que ali é que se ganha dinheiro. Por que nos últimos anos aumentou em 1.200% a apreensão de menores? Por que não diminuiu? A maneira de se ganhar dinheiro mais fácil é com drogas. É dinheiro a rodo.
 
Na época da chacina, muitas crianças viviam nas ruas do Rio. Diante desse cenário que a senhora descreve, há possibilidade de ocorrer um novo caso Candelária?
 
Com certeza. Estive sexta-feira passada na Central do Brasil. Havia umas 200 pessoas dormido na rua. O que tinha de crianças, bebês, meninos e meninas entre 7 e 8 anos era uma coisa impressionante. E tem a questão do crack. Muitos meninos e meninas estão nas ruas por ordem dos pais viciados em crack. Estão lá para pedir dinheiro para alimentar o vício dos pais. Se não se resolvem determinadas situações, vai haver chacinas, que não pararam de acontecer.
 
Onde?
 
Na Baixada Fluminense e em vários locais. Não sabemos porque pouco se fala.
 
A chacina da Candelária foi cometida por policiais militares. A senhora vê mudanças no relacionamento da polícia com as comunidades?
 
Na Maré estamos em conversas com o Bope sobre a pacificação. Isso seria impraticável há alguns anos. Está havendo mudanças, mas não com relação à estrutura militar da polícia. Práticas como torturas, desaparecimento de corpos, entre outras, ainda existem. A família do Amarildo [Dias de Souza, ajudante de pedreiro e morador da Ro-cinha que desapareceu após ser aborda-do por policiais da UPP da comunidade] foi fazer exame de DNA. E se descobriu que o sangue no carro da PM não era do Amarildo. Era de quem? Essa pergunta precisa ser respondida.
 
A senhora ainda tem contato com as crianças que viviam na Candelária na época da chacina?
 
Muito pouco. O meu telefone continua o mesmo, mas contatos ficaram cada vez mais escassos. Soube há poucos dias que a Gina, que estava lá naquela noite, morreu. Ela estava internada num manicômio que foi extinto. Foi assassinada no Centro, mas não sei em que circunstâncias. Cheguei a visitar a Gina uma vez, quando, num dos poucos momentos de lucidez, ela citou o meu nome. Tinha ainda contato com o Tiago, que foi morto há dois anos por uma bala perdida numa favela. Dos outros nunca mais recebi telefonemas. Desapareceram.
 
Abrir WhatsApp