23/08/2024 - 13:20 | última atualização em 23/08/2024 - 13:24

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Artigo: Os primeiros reclamantes

Nicolau Olivieri*





Manoel Hilário da Conceição foi contratado pela Rubber Development Corporation, em algum momento entre 1942 e 1943, e demitido sem receber o aviso prévio.

Inconformado, bateu às portas da recém-criada Justiça do Trabalho de Cuiabá, ajuizando a reclamação trabalhista n. 22/1943, julgada procedente à revelia da Empresa, para condená-la no pagamento de “aviso prévio na importância de Cr$ 300,00, e nas custas do processo no valor de Cr$ 28,00, em selos federais e mais na estampilha de “Educação e Saúde”.

Esse valor corresponderia, atualmente, a algo em torno de R$ 1.030,00, atualizado com base no salário-mínimo.

Mas a Rubber Development Corporation não se deu por vencida. Levou a questão à Embaixada dos Estados Unidos da América que, em 27 de dezembro daquele ano de 1943, enviou ofício do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, pedindo providências e esclarecendo que “o aludido indivíduo nunca foi um empregado regular da corporação, mas apenas seu contratado ocasionalmente na base de um salário diário”.

Em 14 de fevereiro de 1944, ninguém menos que Oswaldo Aranha, Ministro das Relações Exteriores, respondeu o ofício informando que a Rubber Development Corporation, assim como a Metals Reserve Company, a Defense Supplies Corporation e a Commodity Credit Corporation, na qualidade de entidades subordinadas à Comissão de Compras dos Estados Unidos, gozava de isenção de jurisdição, inclusive trabalhista, em razão dos acordos comerciais celebrados entre os países no esforço de guerra.

Aquelas empresas não tinham de pagar nada nem a Manoel Hilário, nem a qualquer outro empregado.

Diante disso, Filinto Müller, então Presidente do Conselho Nacional do Trabalho, assinou uma Portaria Reservada, em 30 de maio de 1944, comunicando a todos os Presidentes dos Conselhos Regionais do Trabalho que aquelas empresas gozavam de isenção de jurisdição.

Assim, Manoel Hilário da Conceição tornou-se mais uma vítima da Segunda Guerra Mundial – uma injustiça devidamente registrada num processo trabalhista.

Outros tiveram melhor sorte.

De acordo com sua ficha de registro, Antonio Jotta, nascido em 25 de março de 1883 (conforme a certidão de batismo porque lhe faltou registro civil), casou-se, em 15 de abril de 1907, com Amélia.

Foi admitido como motorneiro de bonde na Rio de Janeiro Tramway, Ligth and Power Company, Limited, em 31 de dezembro de 1912 – que deve ter sido uma festa de ano novo muito feliz para o casal.

Ainda devem ter sido muito felizes com os seis filhos que nasceram – Ondina, Walda, Elsa, Agnaldo, Therezinha e Iza –, que cresceram na casa da família na Rua Oito de Dezembro, em Vila Isabel, perto de onde, anos depois, seria construído o Maracanã.

A filha caçula, Iza, tinha pouco mais de 10 meses quando Antonio Jotta envolveu-se numa greve bastante agitada, entre abril e maio de 1932. Foi, por isso, suspenso e tornou-se réu no inquérito para apuração de falta grave, sob a acusação de participar “como cabecilha de grupos de amotinados” e “concorrido com instigações e actos para a perturbação dos serviços de transportes”.

Ainda não havia a Justiça do Trabalho, e esse processo, de número 2-6557/32, tramitou como processo administrativo no âmbito do Ministério do Trabalho.

Além disso, havia uma longa lista de faltas cometidas pelo motorneiro. Em 1922, por exemplo, ele foi pego “palestrando em serviço”, não atendeu ao sinal do passageiro, e era muito comum as pessoas caírem na rua quando desciam do seu bonde.

Foram ouvidas ao todo sete testemunhas, uma das quais, inclusive, atestou que o motorneiro não demonstrou o “menor respeito e consideração pelos passageiros que viajavam no seu carro, tanto que, na occasião em que resolveu mudar o itinerário do bonde que dirigia, entrando pela rua Silva Freire, desattendeu aos protestos dos que pretendiam seguir pela rua 24 de Maio” que era o caminho regular do “vehiculo”.

Ainda assim, o Conselho Nacional do Trabalho, em julgamento de 27 de outubro de 1932, tendo como Relator Francisco Barbosa de Rezende, entendeu que não foi suficientemente provada a falta do empregado e determinou sua reintegração ao emprego, com todas as vantagens legais do período de afastamento.

Um belo trabalho do seu advogado, Dr. Mayr Cerqueira.

Finalmente, em 20 de novembro de 1933, Antonio Jotta foi reintegrado, vindo a se aposentar em 22 de julho de 1937.

Manoel Hilário da Conceição e Antonio Jotta não são os primeiros reclamantes – nome que se dá aos autores de ações judiciais trabalhistas. São dois dos primeiros.

Suas histórias estão registradas em lindas peças processuais, redigidas sem nenhum traço do bacharelismo que infelizmente tanto polui as petições e sentenças atuais.

Seus processos, como o de muitos outros trabalhadores e empresas das décadas de 1930 em diante, estão digitalizados e podem ser facilmente

consultados no excelente Centro de Memória do Tribunal Superior do Trabalho, mostrando que, apesar de toda a evolução tecnológica, de todas as mudanças econômicas, políticas e sociais, muitas das lutas dos advogados e juízes, de hoje, são as mesmas lutas de advogados e juízes de ontem.

*Nicolau Olivieri é advogado trabalhista. Artigo publicado nesta sexta-feira, dia 23 de agosto, no jornal O Globo.

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