27/05/2009 - 16:06

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Artigo: A Justiça e o homem da esquina - Maura Santayana

A Justiça e o homem da esquina


Mauro Santayana *

Ao anunciar, ontem, a escolha da juíza de origem portorriquenha Sonia Sottomayor para a Suprema Corte, o presidente Obama citou o célebre juiz Oliver Wendell Holmes, com a frase marcante: "The life of the law has not been logic, it has been experience". O postulado de Holmes é anterior à sua nomeação para a Suprema Corte, que se deu em 1902. Encontra-se no trecho axial de seu livro, The Common Law, publicado em 1881, quando ele tinha apenas 40 anos, mas já era professor de Direito. Holmes completa seu pensamento, dizendo que a lei incorpora a história do desenvolvimento de uma nação durante vários séculos, e ela não pode ser tratada como se contivesse somente os axiomas ou as conclusões de um livro de matemática. Com esse entendimento, é natural que Holmes, durante os 30 anos em que atuou na Suprema Corte, tenha sido conhecido como "O Grande Dissidente", em um tribunal de maioria formalista e conservadora.

A indicação da juíza Sottomayor começou a provocar, tão logo anunciada, uma discussão democrática nos Estados Unidos. Porta-vozes conservadores a contestam, alegando que ela é uma "ativista". Ativistas, no entanto, costumam ser os juízes da Suprema Corte. Exemplo desse ativismo foi a decisão, pela maioria de um voto em favor de Bush contra Gore, na fraudulenta votação na Florida. Esse voto, contra a História, levou ao desastre econômico e político da grande nação, com a violação dos direitos do homem.

Sem referir-se diretamente à carreira singular da juíza - órfã de pai aos nove anos, que viveu em uma habitação popular do Bronx, criada pela mãe viúva com grande dificuldade - Obama disse ser importante que um juiz conheça como é o mundo e como o povo comum vive. Enfim, com outras palavras, é importante que o juiz ouça o clamor das ruas e entenda o sofrimento do "sujeito da esquina". O problema essencial da justiça é o de sua definição. Há casos em que a lei não serve à justiça. É conhecida a preocupação do grande teórico da Revolução Francesa, o abade Sieyés, em seu "Ensaios sobre os Privilégios", quando ele diz que a lei - a lei de então, contra a qual se levantavam os "sans-culotte" - em lugar de promover a justiça, condenando os privilégios, era deles cúmplice. A lei era, portanto, injusta, como injustas continuam a ser inúmeras leis.

Desse debate participa Joaquim Falcão, com artigo publicado domingo pela Folha de S.Paulo ("Empatias e consequencialismos"), sobre o que se passa em nosso STF. Falcão citou Obama que, dias antes de escolher a substituta do juiz Souter, e coerente com o juiz Holmes, ponderou que "a decisão judicial não é apenas uma questão de teorias jurídicas abstratas e de notas de rodapé em manuais de Direito. Ela tem a ver com as conseqüências práticas para o cotidiano do povo".

Ainda agora estamos diante de uma situação que faz excitar a discussão. O juiz Ali Mazloum denunciou o delegado Protógenes Queiroz à Justiça pela sua conduta nas investigações da Operação Santiagraha. Excluindo-se o fato de que o mesmo juiz foi objeto de investigações da famosa Operação Anaconda - que levou à cadeia o juiz Rocha Mattos - estamos diante de uma situação em que a sentença (ainda que de primeira instância) está em notório desacordo com a opinião das ruas. O juiz se estribou, conforme o noticiário, em regras e normas da Polícia Federal.

O delegado Protógenes talvez tenha cometido faltas disciplinares, puníveis conforme as regras de sua corporação. Essa é uma questão interna da Polícia Federal. Mas é difícil entender por que a Agência Brasileira de Inteligência não pode colaborar com outros órgãos, como é o caso da Polícia Federal, em investigações de interesse nacional. É de evidente interesse nacional a investigação das operações do banqueiro Daniel Dantas, em que há suspeitas de evasão de divisas, de interceptação ilegal de conversas telefônicas e de suborno de autoridades.

Os cidadãos têm acompanhado com atenção o desenrolar desse processo, com a desconfiança de que tudo o que se faz, faz-se em favor dos poderosos. O sentimento nacional, que pode ser aferido nas manifestações livres da grande praça pública que é a internet, é o de que o Poder Judiciário decide em favor dos opressores, enquanto desdenha os oprimidos. Nunca a percepção de que temos uma justiça de classe foi tão nítida quanto hoje.

*Mauro Santayana é jornalista

Coluna publicada no Jornal do Brasil, 27 de maio de 2009

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