O direito à memória Liszt Vieira* O Supremo Tribunal Federal, em ação movida pela OAB, decidiu por ampla maioria, que a Lei da Anistia se aplica também aos agentes públicos do Estado que, durante a ditadura militar, cometeram os crimes de tortura, assassinato e desaparecimento forçado de prisioneiros políticos. A decisão do STF, que vem ao encontro dos interesses políticos de certos setores do governo, parece se chocar com a doutrina jurídica e a jurisprudência internacional que afirmaram, reiteradas vezes, que crimes de tortura não são crimes políticos, mas sim crimes contra a Humanidade. O Brasil é signatário de numerosas convenções internacionais que consideram a tortura crime imprescritível. Essas convenções e tratados estão presentes em nossa ordem jurídica após ratificação pelo Congresso Nacional. Assim, não há dúvida de que a tortura é um crime contra a Humanidade, imprescritível e não passível de anistia. Atualmente, o Brasil é réu em ação movida pelo Centro de Justiça e Direito Internacional (Cejil) na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), acusado de proteger os responsáveis pela tortura, assassinato e desaparecimento de presos políticos durante a ditadura militar. A chamada Lei da Anistia concedeu anistia aos crimes políticos. E tortura não é, e nunca foi, crime político. A rigor, não se trata de revisão da Lei da Anistia. Nenhuma lei no Brasil jamais estendeu anistia para crimes de tortura. São crimes contra a Humanidade praticados por agentes públicos ao arrepio da lei, uma vez que os governos militares nunca reconheceram a tortura como ato oficial de Estado. O que está em questão é a interpretação da lei, e não sua revisão, que caberia apenas ao Poder Legislativo. Trata-se de saber se a Lei da Anistia se aplica ou não aos agentes públicos que, em nome do Estado, cometeram os crimes de tortura e assassinato de presos políticos. O Brasil precisa conhecer seu passado para enfrentar o futuro. A nação tem direito à memória. É um equívoco impor esquecimento, reduzir anistia a amnésia. Para esquecer, é preciso, antes, conhecer. Não se pode esquecer o que foi reprimido, pois o reprimido retorna. Processar e julgar os agentes do Estado que cometeram crimes imprescritíveis e insuscetíveis de anistia, como tortura e assassinato de presos políticos, a exemplo do que fizeram os governos vizinhos da Argentina, do Chile e do Uruguai, é condição essencial para o fortalecimento da democracia. Único país da América Latina que não lutou pela independência, concedida de cima para baixo, o Brasil tem uma tradição conciliatória que, ao longo da História, tem beneficiado suas elites políticas e econômicas. Recorrendo à História, talvez seja possível compreender melhor a decisão conservadora do Supremo que estendeu a anistia, feita para crimes políticos, aos crimes comuns cometidos por agentes do Estado durante a ditadura militar. *Liszt Vieira é presidente do Jardim Botânico e foi exilado político Artigo publicado no jornal O Globo, 6 de maio de 2010